Lei de Incentivo à Cultura
Rafaela Tasca

Corpo, câmera, som!

Revista ZAZ - edição número 44

Não é videoclipe, não é dança, tampouco cinema. Com o foco no contemporâneo, a Cia. Verve de Dança, de Campo Mourão, apresenta no curta-metragem “Non Invito” uma nova linguagem: a videodança.

Antes de tudo, há de se compreender que “Non Invito” vai além do que é. Mostra mais do que parece dizer. É um fragmento. O corte de um processo. O trecho de uma história que ainda vai se movimentar. Sua metragem é curta. Seu plano é longo. O foco é contemporâneo.

Não é videoclipe, não é o registro de uma dança, não é cinema. É um entre tudo isso e, ao mesmo tempo, outra linguagem: a videodança. Uma expressão artística em trânsito que se move por uma das mais férteis zonas de fronteira da arte: a tecnologia.

Para quem quiser entrar no entrelaçado de música, dança e teatro físico de “Non Invito”: É um vôo preto no branco e de um fôlego só! O que é “Non Invito”? Um audiovisual de pouco mais de 16 minutos com as experiências e pesquisas da Companhia Verve de Dança.

Avant-Première

Em agosto ocorreu a première de “Non Invito” no palco do Teatro Municipal de Campo Mourão. Em cena, não havia atores ou bailarinos com o “ao vivo e a cores”. Aliás, todos os dançarinos da Verve estavam sentados como espectadores.

O espetáculo era projetado por meio de um feixe de luz e, tão só, por ele. As cenas iam se passando na bidimensionalidade da tela chapada. Tal qual uma sessão de cinema, a projeção do vídeo mostrava, em tempo presente, a dança do passado.

Naquela noite, ao final da première, a força comunicativa daquele videodança acarretou a mais genuína expressão de reverência às apresentações cênicas: os aplausos. (Observe: Um vídeo foi aplaudido!)

Projeto-piloto

“Non Invito” é o primeiro curta-metragem experimental da Verve, companhia de dança conhecida por seus expressivos trabalhos afinados com o contemporâneo. Com sede na cidade de Campo Mourão, a Companhia coleciona experiências em palcos nacionais e internacionais. A incorporação de novas mídias em seu processo de trabalho é uma característica em suas obras.

O enredo do curta-metragem é absolutamente simples e com aquele quê de banal. É a famosa saga do penetra: uma garota vai a uma festa sem ser convidada. No entanto, esta história despretensiosa se revela um grande exercício de dramaturgia para câmera. Especialmente pela força da linguagem de câmera que “veste” o olho do espectador - um também “non invito” a transitar pelo interior da casa junto com a protagonista (interpretada pela atriz-bailarina Mariusa Bregoli).

Gravada em maio de 2007, a versão apresentada tem duração de 16 minutos e foi realizada com um único plano-seqüência. Assim, a câmera percorre com fluidez o tempo em sua inteireza. Como um ser vivo que pouco se deixa modificar pela exasperação dos meios técnicos disponíveis, “Non Invito” mantém a noção de experiência de tempo. Poucas são as transgressões.

Para sua produção, participaram 80 figurantes que ensaiaram suas marcas no mesmo dia da gravação. Algumas partes foram improvisadas e outras totalmente controladas. Estética do espontaneismo? Não, de maneira alguma. Embora o roteiro tenha sido, de fato, finalizado apenas 2 horas antes da gravação, a equipe fixa da Verve ensaiou durante 3 meses, para elaboração de coreografias e afinação do direcionamento da câmera.

A proposta do grupo também foi a de buscar outras mídias para veiculação de seu experimento. O vídeo assumiu a forma de um “viral” – material de fácil propagação via Internet. Assim, antes do palco, o videodança da Verve já “flutuava no silício” e poderia ser visto e acessado das mais diversas localidades. Bastava colocar algumas palavras-chave em buscadores de internet - com opção para assistir vídeo – que, em pouco tempo, “Non Invito” já estaria carregado e pronto para ser visto na tela do computador.

Câmera-olho

Diferentemente da liberdade do campo de visão dos palcos, no vídeo, somente é possível ver aquilo o que a câmera capta. Ou seja, o limite é o enquandramento das cenas. Do começo ao final é pelo olho da câmera (e com a pretensão de não piscar) que os fatos vão se desenrolando. Um olhar que ora passa a ser rápido, pensativo e de busca. Ora de esquiva e de parada. “Non Invito” é uma câmera-olho do espectador.

Obviamente, há acontecimentos que estão para além do enquadramento. Um extra-campo que enriquece a percepção do espaço. Entretanto, o estilo visual, sem variações do ponto de vista, segue até o fim. Assim, há apenas um olhar.

Movimento puro, a expressiva gestualidade da câmera à solta cria um efeito orgânico sintonizado muito mais com a realidade ali, dançante, do que propriamente às técnicas clássicas de posicionamento operadas por travellings e tripés. Assim, aguça os sentidos pela inquietação do olhar na busca de seu referencial, seu ponto de apoio, no caso: ela - a moça.

O fato é que a câmera do diretor e coreógrafo Fernando Nunes também dança. Gira em falso, oscila, balança, tem tremelitudes, granulações, vaivéns. Há pulsão, impulso, instinto de busca que seduz pela circularidade dos movimentos e luminiscência que o efeito do estrobo - com seus flashes intermitentes - promove. O efeito rítmico se acentua, sobretudo, com as aproximações e distanciamentos feitos a golpes de zoom.

Tal ebulição tem sua expressividade máxima na cena em que a protagonista está em um pequeno lavabo de apenas cerca de 1,5 m². Neste parco espaço, a trama se intensifica. A tensão é dramática.

Expressões in vito

Ancorado na triangulação entre os movimentos dos corpos, da câmera e da música, “Non Invito” é vídeo de poucas palavras, mas muito diálogo. Suprimida a palavra, outras vias de expressão se beneficiaram. Como, por exemplo, a expressividade das funções estéticas dos movimentos do corpo: gestos, pulos, giros e salteios.

O design sonoro – especialmente desenvolvido pelo músico inglês Chris Vine - cria uma paisagem com uma multiplicidade de texturas acústicas. A base é no eletrorock, mas há a inserção de sonoridades documentais, tais como: a fala, a risada, o som ambiente e os silêncios. Desse modo, intensifica-se a percepção sinestésica trazendo a realidade para dentro do arcabouço da ficção.

A opção pelas cores em preto e branco acaba por criar uma mise-en-scène de maior efeito dramático. As formas geométricas do espaço são mais perceptíveis à medida que a câmera, em movimento difuso, consegue animar aquilo que é estático.

Por ser um fragmento, pode-se até supor que ali ocorre uma epifania. Em alguns momentos, a personagem revela momentos de introspecção que se opõem às peripécias de sua aventura de penetra, mas que nada alteram o curso de suas peraltagens.

De todo modo, este “Non Invito” é apenas um corte no processo de um projeto de longa-metragem que segue a mesma construção narrativa. Para o longa, a idéia é a da experiência imersiva com a câmera em um plano-seqüência de 60 minutos. Certamente, um projeto de fôlego!

BOX 1 – PLANO ÚNICO

Na história do cinema, alguns diretores já almejaram a realização de um filme com um plano-seqüência único. Recentemente, Alexander Sokúrov experimentou esta linguagem em "Arca Russa” (Russian Ark, 2002) em que filma o Hermitage, em São Petersburgo - um dos maiores museus do mundo. Filmado em um plano-seqüência único, sem cortes e com duração de 97 minutos, Sokúrov conseguiu a proeza de atravessar 35 salas do museu e transformar a tela de cinema em um quadro vivo por onde desfilam três séculos de história.

No entanto, um dos exemplos mais clássicos é “Festim Diabólico” (Rope, 1948) do mestre do suspense, Alfred Hithcock. Baseado na peça teatral de Patrick Hamilton, a idéia de Hithcock era a de realizar a adaptação cinematográfica da peça com a fluidez do plano-seqüência único e com a concentração espacial do teatro. Entretanto, à época, em virtude dos limites técnicos que o tamanho da película cinematográfica impunha, o filme teve que ser todo rodado em tomadas contínuas de quatro a dez minutos. Assim, oito cortes foram necessários, mas a edição ocorreu com tal precisão e ilusionismo que a impressão de um único plano-seqüência permanece.

BOX 2 – VERVE DE DANÇA

Localizada fora dos grandes centros urbanos, a Verve fez o interior do Paraná a sua morada. Desde 1997, se fixou em Campo Mourão, cidade que vem se projetando para além de suas fronteiras pelo viés artístico-cultural. Em entrevista, Fernando Nunes. Designer, ilustrador, artista plástico, fotógrafo e diretor da Cia. Verve de Dança.

Quais foram os insights que levaram à produção de “Non Invito”?

A primeira idéia foi a de transferir para outro suporte a dramaturgia da Verve. Nos últimos três espetáculos, venho experimentando a linguagem de vídeo em cena. Ora dando suporte visual à performance, ora como um olhar que só a câmera pode propor para redimensionar um espetáculo ao vivo. A segunda idéia foi a de ampliar nossa visibilidade produzindo vídeos para a Internet. Esta mídia abre uma possibilidade interessante que é a de atrair um novo espectador (virtual) para o espaço físico do Teatro. A terceira idéia é a de ocupar novos nichos artísticos, como festivais de videodança e de cinema, por exemplo.

Por ter um perfil multimídia, a Verve já havia trabalhado com projeções de vídeos e câmeras em tempo real. No entanto, é a primeira vez em que há a produção de um material audiovisual específico para além dos palcos. Qual a importância da realização de Non Invito para a Companhia?

O ponto principal foi sair do tradicional “palco italiano” e ocupar espaços que nos possibilitassem novos desafios coreográficos. Em “(C2H4)n-plástico”, nosso espetáculo de 2003, utilizamos várias câmeras presas aos corpos dos bailarinos. Era um momento único, transmitido em tempo real. Ali era possível ver o que o bailarino sentia e percebia nas conexões com outros bailarinos, além da visão não comum dos bastidores. Levamos literalmente a platéia para dentro do palco. Com toda esta vivência, “Non Invito” desafoga várias idéias acumuladas ao longo dos 12 anos de carreira da Companhia.

Em virtude do novo suporte de mídia, houve alguma alteração na proposta de trabalho da Verve?

Não neste caso. Todo o processo de criação e compartilhamento de idéias que fazemos para o palco não foi diferente, até porque usamos apenas um plano-seqüência que faz tudo parecer um grande espetáculo enquanto a câmera grava. Sem cortes há maior fluidez nos movimentos que se aproximam mais da realidade do palco. O que difere é a compreensão do intérprete e do diretor, em comungar o que a câmera estará captando. Ensaios de distanciamento e aproximação da câmera são vitais, pois possibilitam, nos momentos de improvisação, maior confiança entre o performer e a fotografia. Tudo isto não significa facilidade, é preciso um grupo experiente para que o trabalho tenha menos riscos.

No vídeo, há poucas falas, mas muito diálogo. A idéia sempre foi a de suprimir a palavra em benefício das outras vias de expressão - especialmente a música, a gestualidade dos corpos e da câmera?

Em “Non Invito”, a supressão do texto ocorre para que uma história simples se torne interessante ao espectador através do plano-seqüência. São infindáveis as maneiras que se pode contar um drama, fotografar uma cena, com a liberdade de ângulos da câmera. Uma visão que no teatro convencional não se consegue compartilhar. Assim, a câmera passa a ser um instrumento de ampliação da comunicação do corpo. A música do vídeo foi criada posteriormente à edição. Assim, mais livre e com mais texturas, ajudou a não cairmos na tentação da usual e perigosa movimentação travada aos “bits” musicais.